Amar é o verbo inicial

José Raposo Fotografia


Há uma fase na vida em que as pessoas, munidas da sua tão, mas tão bem intencionada e muitas vezes inconveniente pressão social, nos querem fazer sentir que a solteirice é uma viela mal iluminada e húmida, com cheiro a mijo de gato e naftalina, onde só permanecem ou os falhados sentimentais ou os esquisitinhos, que de tanto escolherem acabam condenados a esse solitário não-lugar. Essas perguntas devem ter decorrido entre os meus 20 e os 30 e poucos anos. A determinada altura, o kit de perguntas sobre a vida pessoal alheia começa a ficar na algibeira. Será a fase em que já nos dão como casos perdidos. É a melhor fase.

Será assim tão difícil perceber que se se continua sem um par é porque, por exemplo, se acredita convictamente no amor? Será assim tão difícil de entender que o conceito e sentimento de amor é algo demasiado íntimo e pessoal? Será tão difícil de perceber que a afinidade entre duas pessoas é um milagre, uma dádiva que pode demorar uma vida a acontecer (e que pode nem vir a realizar-se e ainda assim sermos felizes?) Será tão difícil perceber que o tempo de solteirice não é um fardo, mas um imenso processo de auto-conhecimento? Todos somos singulares, cada um convive consigo próprio da forma que consegue ou que se esforça por conseguir. Alguns não sabem conviver consigo próprios e preferem estar sempre em relação. Alguns conhecem cedo a sua pessoa, ou julgam ter encontrado a sua pessoa. Outros demoram mais tempo a encontrar o seu par porque as vidas não são standardizadas e cada um tem o seu caminho até ao amor. Alguns nunca encontram verdadeiramente o amor, mas ainda assim decidem casar. 

Alguns, como eu, demoraram a chegar ao casamento porque foi tarde que conheceram a pessoa com quem fazia sentido dar esse passo. Preferia estar sozinha a estar com alguém que não me fizesse sentir que a nossa soma tornaria o nosso mundo um lugar mais belo e poético. Não me fechei ao amor. E, agora que encontrei o amor que sempre quis, percebo bem, ou melhor, sinto bem que nunca me fechei ao amor porque ao amor nunca nos fechamos. Há muitos anos, entrevistei um padre que me disse que o amor era uma porta que se abria por dentro. A série de desilusões amorosas que se evitavam se acreditássemos na verdade daquela afirmação. Mas o caminho até à nossa verdade é feito de desvio e desacerto. Só assim cumprimos o ser que somos. Muitas vezes, confesso, acreditei que a força do que sentia por outra pessoa era suficiente para escancarar a porta do outro. Mas nunca é, se ambos não estiverem com os corações alinhados. 

O meu tempo de solteirice foi tempo abençoado. Eu adoro a companhia dos meus, mas sei estar sozinha comigo mesma. Sou assim, fiz-me assim, a vida talhou-me assim. Aproveitei bem o tempo de solteira para me conhecer, para me olhar e ver, para ler. Ler o mundo, ler-me a mim. O silêncio faz-me escutar a voz interior e assim ouvir melhor os outros. 

A solteirice não foi tempo perdido, foi tempo ganho comigo mesma, que sou o centro da minha existência. Quanto mais for, melhor serei, melhor me darei aos outros. O que teremos a dar a uma relação se não tivermos o que dar a nós próprios? Já dei demasiado de mim aos outros, já centrei a minha atenção nos outros e nos problemas dos outros (onde eu não era a solução, nem traria a solução), até me sentir vazia. O problema não estava no outro, estava em mim, que me esqueci de mim própria e fugi do meu centro. Não somos inteiros se nos anularmos pelos outros. Não somos inteiros sem olhar de frente a solidão.

A realização da minha felicidade não se centrava na ideia de casamento. Sentia-me feliz quando conheci o agora meu marido. O Hugo não surgiu para preencher vazios interiores porque, na verdade, não me sentia vazia. O que aconteceu foi que o nosso encontro ampliou a pessoa que já éramos. A soma dos dois escancarou, por dentro, portas e janelas, como uma ventania de luz, silenciosa e quente. E, de repente, eu, tu, nós. Não somos um só, somos nós. Somos mais inteiros.

Confesso que, noutros tempos, ao pensar em casamento, acabava por sentir que seria um dia cheio de nervos e embaraço. Não pelo compromisso em si, que sempre fui mulher fiel aos meus princípios, fiel ao amor. Mas pelo dia em si. No dia do casamento não tem como a noiva e o noivo não serem o centro das atenções. Não dá para estarem discretamente na festa, afinal a festa é deles, para eles, com o grupo de pessoas que mais sentido faz ter na celebração do amor que é tão deles. 

Quando entrei na Igreja, com o meu pai, confesso que estava nervosa. O bouquet denunciava o nervosismo, mas, assim que cheguei ao olhar do Hugo, veio a serenidade. Éramos o centro das atenções, mas isso deixou de ser constrangimento, para mim, que sou tímida. Afinal, o dia era de celebração do amor. E sim é bom ser o centro das atenções, se é para celebrar a dádiva de ter encontrado o amor da minha vida, da nossa vida. 

O amor é raro. Nós sabemos bem disso. Por ser tão raro e tão puro, queremos cuidar dele com toda a luz da nossa atenção. Aos 40 anos, já sabemos que o amor é matéria sagrada e rara e o amar o verbo inicial. O verbo que mudou as nossas vidas pelo avesso, que é o lado do melhor verso. 

Comentários

  1. És fantástica! És real no que escreves.
    Um beijinho grande 😉

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    1. Obrigada! :) As palavras têm de ter veias por dentro. Beijinho

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