Cuidar(mo-nos), precisa-se

Hisano Hisashi


A velhice é um espelho que nos coloca no devido lugar. O lugar da finitude, da humildade. Perante a velhice todos nos tornamos velhos, ainda que jovens. No nosso íntimo sabemo-nos, como diria Fernando Pessoa, “cadáveres adiados que procriam”. E isto não é conversa deprimente. Isto é o que somos, seremos.

Por estes dias tem-se falado na questão do envelhecimento e de quem cuida dos mais velhos, a propósito das propostas – chumbadas pela maioria parlamentar - dos deputados do CDS-PP e do PAN para criminalizar o abandono de idosos em hospitais e noutras unidades de saúde. Como bem lembra a minha antiga professora Felisbela Lopes, num artigo de opinião publicado no JN, criminalizar o abandono dos mais velhos não se afigura como a melhor solução, uma vez que “estamos perante um problema, acima de tudo, social e não do campo da justiça”. É preciso melhor Estado Social, é preciso também que, individualmente, cuidemos mais uns dos outros.

Haverá quem abandone os seus idosos, entregando-os à vida e à morte. Há quem arrede a velhice, colocando-a em lares. Há quem se arrede da velhice, entregando os seus à solidão. Há quem, por circunstâncias da vida, não tenha saída que não entregar os seus a cuidados de terceiros. Há quem, por impossibilidades financeiras ou de escassez de vagas em lares de idosos, não consiga sequer entregar os seus aos cuidados de terceiros. Há quem não queira saber dos seus velhos da mesma forma que não quiseram saber deles enquanto novos. Há quem não queira saber dos seus velhos porque nunca existiram laços profundos, para além daqueles que o sangue impõe. Há quem só queira saber do dinheiro dos velhos. Há quem não queira saber dos seus velhos porque estes nunca foram flor que se cheire. Há quem cuide dos seus mesmo que estes, ao longo da vida, tenham tido atitudes desprezíveis. Há quem não saiba amar. Há quem não saiba tornar-se amado. A velhice só torna a falta de amor mais dramática.

Morrer num hospital não é desumano. Morrer num lar de terceira idade não é desumano. Desumano é morrer sem amor, sem olhos que nos abracem. O amor não surge espontaneamente, sem semente, no aproximar da recta final da existência. O amor é um projecto de vida. Ou cativamos os outros  - e o seu amor - ao longo da vida ou  não se espere que ele nasça nas horas que antecedem a decrepitude. E às vezes nem o amor basta.

A minha experiência pessoal, felizmente, fala-me de amor. Na minha família não se deixou morrer ninguém ao desamparo. E eu nasci rodeada de avós e bisavós. O que significa que já perdi muitos dos meus. Alguns muito precocemente: a minha avó materna, a minha mãe. Muitos dos meus morreram em ambiente hospitalar. Se morressem em casa não teria sido melhor, nem menos doloroso. A morte nunca é fácil, nem nunca se está preparado. Não há manuais que nos valham. Não há soluções ideais para a morte porque a vida não é perfeita. E por isso não o é também no capítulo final.

Aos 30 e poucos anos, além de cuidar dos filhos e do marido, a minha mãe, filha única, tornou-se cuidadora do pai e do avô materno. Um cancro levou a minha avó rápida e precocemente, deixando a minha mãe em luto e em cuidados triplicados. Nessa altura, a minha mãe, por vontade própria, tinha deixado de ser “apenas” cuidadora do lar e tinha começado a trabalhar fora de casa. Por pressão do pai e do avô, que não queriam deixar a casa onde viviam, os meus pais decidiram que seríamos nós a mudar-nos para casa deles. Os meus pais fizeram obras na casa da família da minha mãe e mudámo-nos para lá. Cinco anos depois, como a minha mãe estava cansada de não estar a viver no lar que tinha criado após o casamento, os meus pais voltaram a fazer obras, agora na nossa casa, para que se criassem condições para acolher o meu avô e bisavô.  

O meu avô, cheio de problemas de saúde, mudou-se para nossa casa, enquanto o meu bisavô teimou em permanecer na sua residência. A minha mãe criou a rotina de ir duas vezes por dia a casa do avô, para manter a casa organizada e deixar as refeições. A par disso, cuidava do pai.

Lembro-me das noites desassossegadas, na minha adolescência, em que o meu avô passava a noite a ranger os dentes e a chamar pela minha mãe. “Branquita, Branquita”. Lembro-me do cansaço. Lembro-me da força da minha mãe. O pai acamado e ela, ali, a cuidar de quem a criou. O amor não é só festa, é abnegação. Entrega e cuidado. Olhos e braços cansados e consciência tranquila.

Entretanto, a minha mãe já tinha deixado de trabalhar, mas estava no limite da exaustão. Por insistência de familiares, a minha mãe aceitou a possibilidade de o meu avô ficar internado no centro de saúde local durante umas semanas, para que ela pudesse descansar e recuperar energia. O meu avô ficou internado e, no último dia de vida dele, acompanhei a minha mãe até ao centro de saúde. Mas, acabei por não sair do carro. O estado decrépito do meu avô mexeu comigo, comparar o homem que era com o homem em que se tornara chocava-me. Disse à minha mãe que preferia não ver o avô naquele estado. Mal sabia que naquele dia, já depois da hora da visita, ele morreria. Fiquei triste por não me ter despedido dele, ainda que não soubesse que era dia de dizer adeus. E a minha mãe desolada por ele ter morrido no centro de saúde, quase a culpabilizar-se por o cansaço a ter feito anuir com o internamento.

Durante bastante tempo, a minha mãe permaneceu em estado alerta e acordava de noite julgando estar a ouvir o pai a chamá-la. Os gestos e atenção permanecem em estado de cuidado, mesmo além da morte de quem era cuidado.

A minha mãe voltou ao mundo do trabalho. E continuou a cuidar de duas casas. Marido, filhos, avô. Até que uma queda de uma oliveira levou ao internamento hospitalar do meu bisavô e, após esse episódio, ele aceitou passar a viver connosco.

Aos 50 anos, a minha mãe levou um murro no estômago chamado cancro colorrectal. Levámos. Ficámos sem chão, mas não caímos. O amor amparou-nos os passos. Um tumor T4 é uma morte anunciada. A expectativa médica era que a minha mãe vivesse apenas um ano, dois no máximo. Após o diagnóstico, viveu quatro anos e meio, cinco operações, 40 e muitas sessões de quimioterapia, uma ostomia, duas nefrostomias.

Pelo meio da doença da minha mãe, o meu bisavô, com 99 anos, começou a perder a genica. Se até ali nunca tinha dado trabalhos de maior, naquela altura, o meu bisavô, que tinha orgulho na sua longevidade, começou a dizer que já não chegaria aos 100. Começou a ficar com dificuldades de mobilidade, praticamente acamado, sabendo que a neta precisava que cuidassem dela também. Acabou por morrer cá em casa, sentado no sofá, junto à lareira. E eu a chamar por ele, quando ele já estaria mais do outro lado do que deste. E, de repente, a respiração silenciou. Foi-se. Eu sozinha perante a passagem da morte. 

A minha mãe, percebendo que a morte do avô estava a chegar, tinha ido chamar o meu pai e irmão, que tinham saído de casa, sem telemóvel. Chegaram a casa e a preocupação era a minha mãe. Como protegê-la da dor da perda do avô de quem cuidou durante tantos anos? O preço de amar é sofrer com a perda. Só perdemos quem efectivamente chegou a ser nosso. O resto esquecemos.

Eu, o meu pai e irmão estivemos sempre junto da minha mãe, durante a luta contra a doença. Em cada internamento, visitas diárias, duas vezes ao dia. Ali estávamos, sempre, por amor e com amor, mesmo que o cansaço e a angústia fossem um andor nos nossos ombros. Naquela altura, ser freelancer foi o melhor que me podia ter acontecido. Não acredito em acasos. Podia ter uma situação profissional mais instável, mas a prioridade era a minha mãe. Nós fomos sempre a prioridade dela. Ela não precisava de nos dizer, os exemplos que ela nos deixou foram esses. E há valores que nos são passados mais pelos gestos que pelas palavras. A minha mãe era a minha, nossa, prioridade. Por isso, teve sabor agridoce o convite para integrar a redacção do Sol, em Lisboa. Era algo que eu queria muito, mas…e a minha mãe? Quando lhe contei do convite, a resposta pronta da minha mãe foi: “Claro que vais aceitar!”. Claro.

E fui. E vim. E ia e vinha. Todos os fins-de-semana. Todos os fins-de-semana para usufruir do colo da minha mãe, para usufruir da vida que era.

A minha mãe superou as expectativas porque era uma mulher forte, porque era amada porque amava a vida. Sabia que era cuidada. Tenho a certeza disso. E porque teve um médico, uma equipa médica, que nunca desistiu dela. Por isso, naquela manhã em que se viu ao espelho e teve consciência da cor amarela com que estava, sinal de metástases hepáticas, quis ir para o hospital. Ela sabia que aquela era a última viagem que faria, com o coração a bater. Foi pelo pé dela, o meu pai conduziu-a. Ele também sabia que o amor da vida dele não sairia mais do hospital. Não com vida.

Cuidar é o verbo que dá sentido às relações. Cuidar é amar e nem sempre muitos filhos ou netos têm capacidade para esse exercício, seja por egocentrismo, seja por medo da dor, seja por inabilidade em lidar com a decrepitude, seja por falta de recursos financeiros, seja por questões geográficas, seja por falta de força física ou psíquica, seja porque também se precisa de ser cuidado. Por isso, todos, sociedade civil e Estado, devemos encontrar, em conjunto, soluções para que os mais frágeis possam ser cuidados, com dignidade. Não há dor maior que alguém sentir-se um fardo, para a família, para a sociedade, para o Estado. 

No acto de dar, de cuidar, estamos a receber tanto, tanto. Estamos a receber a dádiva de chegar mais profundamente ao que é ser humano. Estamos a entender a inteireza do significado de família. Ser mais é sempre mais enriquecedor que ter mais. Ser é a única coisa que levamos desta vida. E se formos mais dos nossos, mais com os nossos (familiares, amigos, vizinhos), certamente seremos uma vida que valeu mais a pena.








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