Do rio que corre cá dentro













Há uma ponte que atravessa a minha vida, um rio que me enxagua as fundações. O Mondego faz parte de mim, tal como o orvalho, a geada ou o cheiro a terra molhada, o zumbido das abelhas, o cheiro a resina e a musgo, o fascínio por coisas velhas. Concluída em 1898, a ponte das Caldas da Felgueira, que marca a transição entre dois distritos (Viseu e Coimbra) e entre dois concelhos (Nelas e Oliveira do Hospital), era já velhinha quando eu nasci. Agora, é centenária e melancólica. E entristecida pelos incêndios de 16 de Outubro.

Nos Verões da minha meninice, havia tardes domingueiras que se banhavam nas margens do Mondego, havia tardes em que as mantas eram estendidas à sombra de árvores, enquanto os passos teimavam em ir direitinhos para dentro da água. Com uma banda sonora feita de cigarras, mergulhos e risos, eram tardes cheias de uma liberdade fresca. E de pneus que serviam de bóias XXL.

Nos Verões da minha infância, as pessoas estavam de braços abertos para o rio. E havia barcos a remos que nos punham de braços dados com o Mondego. Havia um rio com vida. E gente que se passeava na ponte, para distrair os domingos, e estava certa de que lá em baixo a mesma água nunca passaria duas vezes.Olhar o fugidio rio é relembrar que nesta vida tudo passa, que um dia tudo será passado.

Os primeiros banhos de piscina foram também rentes ao Mondego, no Grande Hotel das Caldas da Felgueira. Nos quentes finais de tarde, o meu pai pegava em mim e no meu irmão e lá íamos refrescar na piscina. Ao fim-de-semana não havia muita motivação para ir lá arrefecer o corpo. Eram tempos em que o passeio de muitos era ir observar, do lado de fora do recinto, quem tomava banho na piscina do hotel.

Quando comecei a adolescer, o Mondego não deixou de correr nos meus dias. A autonomia começou a ganhar-se com uma scooter. Ia para a escola na lambreta, iniciava-me nos passeios sem os pais, na maior mobilidade do querer, do crescer. Naquela altura, fazia parte de um grupo de seis inseparáveis amigas. Seis mosqueteiras, para três lambretas. Lá andávamos as seis de ‘cu tremido’. Muitos dos nossos passeios tinham como destino a ponte das Caldas Felgueira. Ali gastávamos o tempo em intermináveis conversas e em pequenos piqueniques. A doce contemplação da água que nos refrescava o olhar.

O grande início da emancipação veio com aquela lambreta vermelha. Não havia telemóveis, mas também não fizeram falta. Havia a confiança que os meus, os nossos, pais depositaram em nós. E ir à Felgueira de scooter -  para quem não conheça a estrada que liga Canas de Senhorim às Caldas da Felgueira - é um grande passo em termos de crescimento e responsabilidade. Porque é uma estrada sinuosa, estreita, sem barreiras laterais, cheia de curvas e agora com uma paisagem devastada pelos incêndios de Outubro. 

Hoje, numa coisa tão simples quanto uma ida de mota até à Felgueira, percebo as grandes asas que os meus pais me souberam dar.  A ponte das Caldas da Felgueira está tão perto de minha casa e levou-me tão longe em termos de maturidade. Esta ponte  não é só uma ponte. Este rio não é só um rio. Este rio corre-me dentro, este rio sentiu já a minha pele, o meu calor, as palavras minhas e lágrimas e risos.

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