Gémea prematura



A 17 de Novembro foi Dia Internacional de Sensibilização para a Prematuridade, uma data que é um pouco minha, que nasci cedo demais. Deveria ser um dia um pouco nosso, mas tu, mana, não tiveste tempo de vida suficiente para te contares. Nem chegaste a ganhar um nome. Mas contas na memória afectiva, nas lágrimas que os nossos pais engoliram tão recém-casados. A tua vida terá estado à distância da deslocação que o médico tinha de fazer de sua casa, onde tinha ido jantar, até ao antigo hospital de Viseu. Chegou demasiado tarde. Eu sobrevivi, tu apenas respiraste uns minutos.

Éramos gémeas verdadeiras, nascidas aos sete meses, com 1600 gramas. As duas tínhamos igual peso. Mas o acaso quis que fosse eu a sobrevivente. Tive sorte, muita, em a prematuridade não me ter deixado sequelas.

O dia em que a nossa mãe ficou a saber que tinha uma gravidez gemelar foi de nascimento e morte. Tudo junto. Tu foste para um pequeno caixão, eu para uma incubadora na Casa de Saúde de S. Mateus, em Viseu. Ali, fiquei mais de um mês, com freiras a cuidarem de mim, sem garantia de que sobrevivesse. Ali, num útero artificial, o meu corpo ficou a conhecer a resiliência, sem o teu coração a bater perto do meu, e sem toque, sem peito, sem colo maternal.

Cheguei à vida e perdi a minha companheira uterina. Sempre senti, desde que me lembro de ter consciência de ser gémea, que havia uma falta na minha existência, como se me sentisse uma metade. Estranha entrada na vida esta, a de começar a ser sem a mana que dividiu comigo o espaço mais íntimo, esse sítio onde o milagre da vida nos aconteceu. 

Ao longo da vida, além da sensação de ausência do meu espelho de carne e osso e da curiosidade em saber como se desenharia a nossa cumplicidade, também tenho sentido que vivo o que me estava destinado na minha existência, mas também o que te caberia a ti viver, de tantos desafios que a vida me tem colocado, obrigando-me a crescer mais e mais e a ter a certeza de que viver é um estado de permanente mudança. 

Talvez devido à minha experiência de nascimento, marcada pela solidão passada na incubadora, com a imposição de ausência de carinho materno, não me lembro de ter dificuldades em entreter-me bem sozinha. Apesar de gostar de conviver com as minhas pessoas, nunca vivi como um problema estar só em casa, ou em fazer actividades de forma solitária, como ler, ir ao cinema, visitar exposições ou ir assistir a espectáculos. Sempre encarei as horas que passava comigo própria como momentos de escuta e de auto-conhecimento. Talvez a incubadora tenha alimentado um pouco este meu modo de ser introspectivo e atento ao que vai dentro.

Mas a minha primeiríssima lição existencial foi mesmo que vida e morte estão sempre lado a lado, como a fotografia que captei, em tempos, em Lisboa, de uma loja de roupa de bebé ao lado de uma agência funerária. A vida é mesmo isso. Tão isso.

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